
[RESUMO] Campanha por anistia a Bolsonaro e demais condenados por trama golpista retoma vício que macula a história do Brasil desde o Império. Suposta pacificação defendida por coalização reacionária na verdade é método para minar democracia liberal e restaurar pela ditadura o poder de grupos dominadores tradicionais.
O tema da anistia não pode ser considerado em abstrato, mas nas circunstâncias concretas da política contemporânea, no Brasil e no mundo. Vivemos um período de ataque frontal à democracia liberal por parte de uma extrema direita articulada internacionalmente.
À luz da experiência nazifascista, as democracias do pós-Segunda Guerra ergueram muralhas institucionais contra o autoritarismo. Não bastava confiar no jogo político: era preciso blindar o regime com constituições liberais e republicanas claras, cortes constitucionais fortes e amplos poderes de proteção contra arroubos de maiorias circunstanciais.
Com a globalização dos anos 1980-1990, esse modelo se disseminou, inclusive no Brasil. Ele abriu espaço para a emergência de novos grupos sociais dentro de cada nação —formalmente incorporados, mas até então mantidos como subalternos— e para novos países fora do Atlântico Norte no cenário internacional. Parecia o anúncio de uma era igualitária, capaz de dissolver os vestígios da velha ordem oligárquica e imperial.
Foi então que os grupos que sempre se viram como donos do poder passaram a sentir-se ameaçados. Contra adventícios, imigrantes e diferentes, essas elites tradicionais reagiram, reivindicando sua suposta condição de povo “autêntico”, enraizado em famílias cristãs patriarcais e mitos nacionalistas de fundação que justificariam sua superioridade histórico-cultural.
Organizaram-se, assim, numa coalizão que se diz conservadora e liberal, mas que na realidade reúne reacionários religiosos, fascistas políticos e libertarianos econômicos. No caso das antigas potências coloniais, esse ideário se projeta num imperialismo agressivo destinado a conter o desenvolvimento autônomo de potências emergentes.
O objetivo é contrarrevolucionário: reverter conquistas nacionais e internacionais das últimas décadas, restaurar antigas hierarquias e devolver às velhas elites a hegemonia social e política. Seu diagnóstico é simples e brutal: a democracia liberal —assim como a ordem multilateral que a sustenta— gera uma dinâmica igualitária que condena as minorias historicamente dominantes, sejam países ou grupos sociais, a perderem suas primazias.
A urgência de reverter seu declínio, antes que se torne irreversível, leva essas elites tradicionais a retomar o controle do processo político pela força ou pela fraude. Rompem, assim, com o compromisso democrático e passam a tachar a democracia liberal de “ditadura esquerdista”. Mais do que isso: articulam-se em escala planetária numa espécie de Internacional Reacionária, sociedade de auxílio mútuo dedicada a derrubar o regime democrático mundo afora.
A atual extrema direita esbarra, no entanto, em três barreiras decisivas a seus propósitos: primeiro, a cultura política democrática, construída ao longo de mais de meio século por meio de lugares de memória contra o passado totalitário; segundo, as defesas institucionais erigidas pelas constituições liberais para conter qualquer retorno do autoritarismo; e, por fim, a própria consolidação da democracia liberal como único regime universalmente reconhecido como legítimo
A ofensiva reacionária, por isso, se organiza em quatro frentes.
1) Negacionismo histórico. Procura transferir à esquerda a responsabilidade pelos totalitarismos do século 20. Fascismo e nazismo deixam de ser reconhecidos como ancestrais diretos da extrema direita, o que abre caminho para renovar o assalto à democracia liberal. Ditaduras do passado passam a ser justificadas como necessárias ao combate ao “comunismo” —ou têm simplesmente sua natureza ditatorial negada.
2) Deslegitimação do regime democrático liberal como “antidemocrático”. Semear a desconfiança sobre as eleições é o ponto de partida. Se as urnas são eletrônicas, exige-se que sejam de papel; se são de papel, que sejam eletrônicas. Se a extrema direita não governa, não é porque seja minoritária no eleitorado, mas porque haveria um conluio do sistema contra o “povo”. Daí decorrem os ataques facho-reacionários às salvaguardas democráticas —imprensa, universidades, magistratura (em especial as cortes constitucionais) e organismos internacionais de direitos humanos—, todas denunciadas como instrumentos de opressão do “povo” (entenda-se: o povo de extrema direita).
3) Camuflagem autoritária. A extrema-direita sequestra as palavras “democracia” e “liberdade”, esvaziando-as de seu sentido. A demolição do regime democrático liberal é feita, paradoxalmente, em nome delas. “Democracia” passa a significar governo exclusivo da coalizão facho-reacionária em benefício próprio; “liberdade” torna-se licença para crimes cometidos pela minoria reacionária; e “liberdade de expressão” vira salvo-conduto para difundir mentiras e discursos de ódio contra a própria democracia.
4) Populismo reacionário. As instituições democráticas são rejeitadas como engrenagens de uma suposta “ditadura de esquerda”. Apenas o líder reacionário, ungido por sacerdotes como Silas Malafaia, é reconhecido como legítimo aos olhos de Deus e da nação “histórica”. Sua autoridade deve se sobrepor a parlamentos, tribunais e governos locais. Instaura-se, assim, a “democracia reacionária”: uma pseudodemocracia restritiva, que consagra a superioridade de uma minoria e exclui os dissidentes.
Quando alcança o poder, o populismo reacionário abole o estilo de governo democrático, no qual os atos estão vinculados à lei e aos precedentes. Proclama a supremacia do líder sobre todos os Poderes e passa a governar por decretos e leis de exceção, em nome da “segurança nacional”. Invoca a razão de Estado para encobrir decisões administrativas e legitimar a perseguição de adversários.
Nem por isso, no poder, o populismo reacionário deixa de recorrer aos instrumentos de salvaguarda da democracia liberal, mas sempre em benefício próprio. Reinterpreta os direitos humanos como monopólio de sua base política: “direitos humanos só para humanos direitos”, isto é, apenas para os extremistas de direita.
Rotula as cortes constitucionais de ‘”tirânicas” e ameaça desobedecer às suas decisões. Instituições e magistrados que defendem a democracia liberal contra seus golpes passam a ser denunciados como “violadores dos direitos humanos”.
Às vésperas de eleições, o populismo reacionário busca capturar ou fraudar o processo para assegurar sua perpetuação no poder. Quando derrotado nas urnas, como no caso de Trump e Bolsonaro, denuncia fraude, mas sempre imputando à oposição a autoria do crime. Em nome da “legítima defesa” da vontade do povo que pretendia usurpar, organiza badernas e golpes disfarçados de clamor popular.
Quando o golpe fracassa e os responsáveis são levados a julgamento pelas mesmas cortes que pretendiam fechar ou empacotar, a coalizão reacionária se diz vítima de perseguição política e exige que crimes contra a democracia sejam tratados como meros delitos comuns.
É isso, afinal, que significa sua demanda por “julgamento técnico’”: que a tentativa de abolição da democracia seja reduzida a um assalto fracassado ao botequim da esquina, apagando a dimensão política da aplicação dos princípios constitucionais democráticos, liberais e republicanos.
Este é o contexto em que, hoje, se debate no Brasil o tema da anistia.
A anistia não perdoa: esquece. Suspende a ação da Justiça sobre crimes definidos, faz calar as leis, revoga sua aplicação. Por isso deve ser usada apenas em circunstâncias excepcionais.
Reiterada, desmoraliza as normas de proteção da democracia. Vendida como pacificação —inclusive pelo governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas—, a anistia quase sempre produziu o efeito oposto: não pacificou, mas estimulou a reincidência. E não apenas na República, mas já no Império.
Em 1844, o conservador visconde de Itaboraí já advertia no Senado: “No Brasil não tem havido revolução, não tem havido atentado político que se não siga uma anistia; mas também não há ato de anistia que não tenha sido seguido de um atentado, de uma nova comoção política”.
Para Itaboraí, a anistia só poderia pacificar quando os princípios subversivos que haviam animado rebeliões e tentativas de golpe estivessem já destruídos ou reprimidos de modo irreversível.
E, sobretudo, a anistia jamais poderia ser entendida como fruto da covardia institucional, isto é, da fraqueza do Estado. Nesse caso, apenas animaria os golpistas a reincidir assim que voltassem a dispor de condições.
A experiência brasileira confirmou o diagnóstico. O regime republicano nasceu de um golpe militar, após 40 anos de estabilidade, e desde então os militares jamais deixaram de se imaginar tutores da República, investidos de um suposto poder moderador, como representantes supremos da soberania do povo.
Qualidade que, depois de 1930, invocariam para justificar suas intervenções inconstitucionais no processo político, sob o pretexto de salvaguardar a célebre “segurança nacional”. O efeito das anistias, nesse quadro, foi sempre o mesmo: ao revelarem a fraqueza das instituições, converteram-se em estímulo à reincidência.
Recentemente, o jornalista Pedro Doria viralizou com um vídeo, derivado de artigo seu no Globo, mostrando que todos os golpistas perdoados ou ignorados ao longo da República voltaram a participar de novas tentativas de golpe —destas vezes bem-sucedidas
Na ditadura militar, a anistia de 1979 serviu sobretudo para blindar os militares contra futuros julgamentos por civis no regime democrático que se avizinhava. Seu único propósito, sob o rótulo de “pacificação”, foi garantir impunidade.
Hoje, a retórica da “pacificação” mobilizada pela coalizão reacionária —identificada com a minoria bolsonarista em torno da palavra de ordem de uma “anistia ampla, geral e irrestrita” (sempre a inversão de expressões democráticas para destruí-las!)— retorna com o mesmo vício de origem que macula a história brasileira.
A insistência da coalizão é proporcional à novidade da reação institucional. Os constituintes de 1988 cercaram deliberadamente a cidadela democrática com muros reforçados contra a futura investida autoritária —que sabiam, cedo ou tarde, haveria de retornar.
Por isso criaram um Ministério Público e um Judiciário autônomos. Ninguém dirá que tudo ali são flores. Seria como for, a cidadela criada pelos constituintes não apenas resistiu: processou e condenou Bolsonaro e os outros golpistas, quase todos militares. Foi um divisor de águas na história republicana do Brasil.
Pergunta-se agora: a anistia é conveniente? É cabível? Pacificará o país? À luz das atuais circunstâncias, cotejadas com as advertências do visconde de Itaboraí, a resposta só pode ser negativa.
A coalizão reacionária que pede a anistia não se rendeu às instituições. Não abjurou do extremismo. Persiste em negar a democracia liberal para impor sua “democracia reacionária”. E não recebe uma refutação frontal, infelizmente, da direita institucional identificada com o centrão. Muito pelo contrário.
Enquanto pede anistia, a extrema direita clama ineditamente por intervenção estrangeira, econômica e até militar, consegue o apoio do governo americano para seu ataque contra a democracia brasileira e ameaça diretamente os ministros do STF. Pede anistia sem depor as armas: tenta o golpe por outros meios, enquanto não consegue voltar ao poder.
Nessas condições, a anistia obviamente não pacifica termina de minar a democracia ao legitimar o vandalismo institucional. Se a anistia tem por propósito esquecer, o que se impõe agora é o contrário: não esquecer nada. É tempo de lembrar continuamente atentados passados e aplicar a lei em todo o seu rigor, exigindo que os guardiões da cidadela democrática honrem suas togas e seus mandatos — e não se rendam ao oportunismo nem ao pragmatismo que contaminam a política.
É preciso ser claro: para a extrema direita, “pacificação” só existiu quando conseguiu instaurar sua ditadura —como no Estado Novo e no regime militar. A paz que sempre reivindicou é a do silêncio imposto, da unanimidade forçada, da política reduzida ao medo.
É a paz que se ergue sobre críticos calados, adversários perseguidos, inimigos eliminados. É a paz que estamos vendo hoje sendo criada nos Estados Unidos de Trump, na Hungria de Orbán, em Israel de Netanyahu, e que se tentou aqui criar no governo Bolsonaro.
É, sim, uma paz: mas é a paz dos cemitérios.