
O advogado e ministro aposentado do STM (Superior Tribunal Militar) Flavio Bierrenbach diz ser contra a anistia aos condenados pelo 8 de Janeiro e pela trama golpista, que inclui o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
Apesar desta posição pessoal, ele avalia que, do ponto de vista jurídico, não necessariamente um projeto neste sentido seria inconstitucional, discordando dos que consideram que crimes contra o Estado democrático de Direito não possam ser anistiados de modo geral.
“A anistia é um fenômeno político, histórico e jurídico. É tridimensional. E, em cada momento, um desses aspectos, um desses polos pode predominar em relação aos demais”, defende Bierrenbach, que em 2022 foi um dos oradores que leram a carta em defesa da democracia nas Arcadas da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo), assim como em 1977 foi um dos articuladores da “Carta aos Brasileiros”, tida como um dos marcos da luta pela redemocratização.
Ele, que relembra ter batalhado pela anistia aos perseguidos políticos do regime militar, destaca que anistia não pode significar esquecimento. “Um dos graves defeitos da história do Brasil é apagar o passado.”
Como o sr. vê a movimentação pela aprovação de uma anistia aos envolvidos nos ataques do 8 de Janeiro, ao ex-presidente Jair Bolsonaro e demais réus da trama golpista? O Brasil viveu durante a sua história, tanto no Império como na República, períodos de grande anormalidade democrática. Guerras civis, revoluções, golpes de Estado e alguns períodos extraordinariamente sangrentos.
A anistia, quando vem para terminar um período de anormalidade, exige dois movimentos. Um é olhar para trás, para saber o que foi feito, o que aconteceu. O Brasil é um país que esconde a sua história e, por isso, tem pouca memória.
E o segundo movimento é olhar para frente, para estender a mão, para que dois irmãos que estavam querendo se matar possam estabelecer um projeto de convivência. O que caracteriza uma nação, mais do que um território, uma etnia, um idioma, é um projeto de convivência.
E a movimentação atual? Vejo essa movimentação como razoável na história do Brasil. Seria de admirar se não tivesse acontecido nada parecido com isso. É uma tradição política brasileira pensar na anistia como um projeto de convivência. O que não significa que eu seja a favor de anistia. Eu não faço parte do Congresso. Se fizesse parte do Congresso, eu analisaria a anistia sob um prisma político. Como eu não faço, analiso a anistia sob o ponto de vista jurídico e histórico.
A anistia tem duas faces. Uma é perdão, mas anistia não pode significar esquecimento. Tem que saber o que aconteceu. A história tem que ser contada para que não se repita.
No último domingo (7), o ministro Gilmar Mendes disse que crimes contra o Estado democrático de Direito são insuscetíveis de perdão. O sr. concorda? Não concordo, porque todas as anistias já concedidas no Brasil visavam crimes cometidos contra o Estado democrático de Direito.
Mesmo a Constituição de 1988, o sr. avalia que ela não traz nenhuma trava? Aí depende de uma interpretação do STF. A anistia é uma tradição política brasileira, tem sido concedida para crimes gravíssimos, de grande derramamento de sangue.
E qual a posição do sr.? A anistia é um fenômeno político, histórico e jurídico. É tridimensional. E, em cada momento, um desses aspectos, um desses polos pode predominar em relação aos demais.
Então poderia ser constitucional uma proposta de anistia ao 8/1? Acho que eventualmente pode ser constitucional. E quem tem que declarar a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade é o STF. E o Supremo é esse Supremo que nós temos. Nós não temos outro, é este.
Há quem aponte o caso da anulação do indulto a Daniel Silveira como um precedente, mas ali o entendimento principal do STF se referia ao desvio de finalidade do decreto presidencial. O sr. vê o caso como um precedente para o 8/1? O próprio Supremo considera muitas vezes como precedente aquilo que técnica e teoricamente não deveria ser considerado como precedente, não é?
O sr. vê argumentos a favor de anistiar o 8/1 e a trama golpista? Eu, pessoalmente, não vejo argumentos a favor de anistiar ninguém. Eu acho que as pessoas devem pagar pelo que fizeram. Não tenho argumentos, nem jurídicos, nem históricos, nem políticos para anistiar quem quer que seja.
O sr., a princípio, não considera que a Constituição estaria explicitamente barrando uma anistia no caso do 8/1? Não vejo a Constituição barrando isso. Eu considero que a anistia tem três polos. Um histórico, um jurídico e um político. Isso quer dizer que, por vezes, um desses polos pode acabar pesando mais, por exemplo, o político. Isso é o Congresso Nacional que tem que decidir. O STF não tem o condão de dizer o que é bom e o que é mau para o país. Quem diz isso é a lei, é a Constituição.
O STF erraria se vetasse qualquer tipo de anistia a crimes contra o Estado democrático de Direito? Não, eu não considero que ele erraria, porque se ele tiver argumentos jurídicos consistentes, ele pode negar.
Do ponto de vista formal, é possível aprovar uma anistia antes da condenação? Não, eu acho que isso seria uma coisa esdrúxula. É absolutamente esdrúxulo, anômalo.
Isso não aconteceu com a anistia de 1979? Mas ali não dependia de condenação, ali o que havia era uma perseguição. Pessoas que não podiam frequentar universidades. Algumas que não podiam nem voltar ao Brasil porque, se voltassem, seriam presas e maltratadas, torturadas. Então, embora não estivessem condenadas, a anistia as beneficiou. E eu lutei muito por essa anistia.
Agora, isso não está ocorrendo hoje, não tem ninguém perseguindo ninguém. As pessoas estão sendo processadas de acordo com a lei que existe.
Raio-X | Flavio Bierrenbach, 85
Advogado, foi procurador do estado de São Paulo, vereador, deputado estadual e deputado federal. É ministro aposentado do Superior Tribunal Militar.
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