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Votos do julgamento de Bolsonaro expõem Moraes incisivo e Fux bacharelesco

As sustentações orais do julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e outros sete réus por tentativa de golpe de Estado foram marcadas pelo contraponto entre o tom bacharelesco de Luiz Fux, que citou ao menos 27 autores para embasar seu voto, a retórica incisiva de Alexandre de Moraes, com a repetição do termo “organização criminosa” mais de cem vezes, e os votos mais sucintos de Flávio Dino, Cristiano Zanin e Cármen Lúcia, que recorreu à poesia.

Uma análise textual sobre os votos dos cinco ministros da Primeira Turma do Supremo mostra que, no geral, as palavras mais frequentes e comuns aos discursos têm ligação direta com os cinco crimes julgados: tentativa de golpe de Estado, abolição do Estado democrático de Direito, organização criminosa armada, dano qualificado ao patrimônio público e deterioração do patrimônio tombado.

Análise da Folha utilizou inteligência artificial para transcrever todas as falas do julgamento, que depois foram revisadas, e linguagem de programação para fazer a análise e contagem de palavras e caracteres das apresentações de voto de cada um dos ministros, desconsiderando os trechos em que foram interrompidos pelos pares.

O voto do relator Alexandre de Moraes, que abriu o julgamento, durou 4h50 e registrou um volume de palavras superior ao romance “Iracema”, de José de Alencar. Foi o segundo discurso mais longo, atrás de Fux, cuja sustentação durou 11h30, mais de 13h considerando os intervalos.

Moraes fez comentários sobre sua peça jurídica e usou com frequência (ao menos 15 vezes) o recurso da repetição, uma maneira de enfatizar seus argumentos, em especial quando parafraseava o principal réu, Jair Bolsonaro. Além de ser o ministro que mais mencionou o nome do ex-presidente, também foi quem mais reforçou a ideia de que a ação dos réus configurou uma organização criminosa.

Ao citar uma das frases incriminatórias de Bolsonaro, quando este disse que devia lealdade ao povo brasileiro e que poderia organizar uma “concentração na avenida Paulista para dar um último recado [ao então presidente do TSE, ministro Luís Roberto Barroso]” em 2021, Moraes reforça a frase “último recado” quatro vezes, e emenda: “último recado ameaçando, não pela primeira vez e, lamentavelmente, não pela última vez, o livre funcionamento do Poder Judiciário”.

Ao reafirmar a efetividade da delação do réu Mauro Cid, Moraes também repetiu sucessivas vezes que as defesas dos réus agiram com litigância de má-fé ao tentar confundir oito depoimentos sucessivos com oito delações diferentes.

“Isso foi reiteradamente dito aqui, como se fosse uma verdade. Isso, com todo respeito, beira a litigância de má-fé. Isso beira a litigância de má-fé, dizer que os oito primeiros depoimentos foram oito delações contraditórias. Ou beira total desconhecimento dos autos, não leram os autos, ou beira litigância de má-fé.” Ele volta ao assunto depois: “nem oito, nem nove, nem 14 delações, repito, isso beira a litigância de má-fé”.

Flávio Dino teve o discurso mais enxuto entre os membros da Primeira Turma. Segundo ministro a votar, respaldou o voto do relator em relação à condenação dos oito réus, mas fez uma ressalva, defendendo que Alexandre Ramagem, Augusto Heleno e Paulo Sérgio Nogueira tiveram uma participação inferior na trama. Sua defesa, por isso, tem mais citações a Ramagem do que a Bolsonaro ou Mauro Cid, que encabeçam como os réus mais referenciados pelos outros membros do STF.

Ele poupou citações em sua sustentação oral. Fez referência a outros ministros, como Moraes, Dias Toffoli e Gilmar Mendes, embasando a argumentação na Constituição e em jurisprudências, e deu espaço a um texto do filósofo e político alemão Karl Loewenstein, sobre legislações protetivas da democracia.

“Não vou cansá-los com leituras, mas apenas dois trechos de Loewenstein: a desobediência às autoridades constituídas”, leio em tradução livre, “naturalmente se transforma em violência, e a violência se torna uma nova fonte de emocionalismo. Os conflitos com o Estado, inevitáveis quando essa fase de agressividade ativa é alcançada, aumentam o sentimento comum de perseguição, martírio, heroísmo e vida perigosa, tão intimamente relacionado à violência legalizada como se fosse uma guerra”, disse.

Luiz Fux, o único ministro a absolver Bolsonaro, fez uma apresentação mais extensa em palavras do que romances machadianos ou “Os Lusíadas”, de Luís de Camões. Teceu alguns comentários, mas ocupou a maior parte do tempo na leitura de uma sustentação de mais de 480 páginas, na qual usou mais de 27 referências bibliográficas –de Sêneca, ao aludir ao direito da ampla defesa, aos juristas italianos Giuseppe Chiovenda, Luigi Ferrajoli e Cesare Beccaria.

Também foi o ministro que mais recorreu ao latim, com uma ampla gama de termos: “ratione personae”, “perpetuatio jurisdictionis”, “in dubio pro societate”, “nemo tenetur se detegere”, “lides”, “vênia”, “cogitatio”, entre outras.

Cogitatio“, do latim “cogitare“, é uma expressão ligada ao ato de pensar, e Fux usa o termo para justificar que os réus não poderiam ser condenados por “criação intelectual, maturação, deliberação e discussão do plano” do golpe.

“Em qualquer caso, como preceitua Aníbal Bruno, na sua parte geral do direito penal, os pensamentos e desejos criminosos, objeto, embora de apreciação sob critério religioso ou moral, escapam à consideração do direito punitivo. É o que se colhe do velho Adagio Romano, cogitationis poenam nemo patitur, ou seja, ninguém pode ser punido pela cogitação”, leu Fux.

Dissonante na forma e no conteúdo, a sustenção de Fux foi alvo de ironias e indiretas dos colegas. A decana da Primeira Turma, Cármen Lúcia, disse que levou ao plenário seu voto impresso, mas que não precisaria lê-lo (como Fux), apenas comentá-lo. Dino aproveitou para brincar: “Se tem o voto eletrônico, não precisa de voto impresso, né?”. A presidente do TSE e única mulher do Supremo respondeu, então, que gostava de papel e caneta.

Cármen foi econômica nas citações e recorreu a Afonso Romano Santana, citando o poema “Que País É Esse?”, a Vitor Hugo, Maquiavel e aos historiadores Heloisa Starling e Carlos Fico. Também poupou citações nominais aos réus. Sua fala teve passagens cômicas, como quando contou ter ouvido uma sugestão para Alexandre de Moraes fazer harmonização facial, e feministas quando concedeu a palavra a Dino ponderando que fosse rápido “porque nós, mulheres, ficamos dois mil anos caladas, nós queremos ter o direito de falar”.

Zanin foi o último a ler seu voto, que condenou os oito réus. Citou ministros, ao tratar de jurisprudências, e ao menos cinco juristas e doutrinadores, como Claus Roxin, Beatriz Camargo e o filósofo italiano Norberto Bobbio.


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