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Critério para STF deveria ser diversidade, não cálculo político, diz vencedor do prêmio Jabuti

Vencedor do prêmio Jabuti de 2025 na categoria educação, o professor de direito constitucional Adilson José Moreira, 50, defende que a indicação de uma pessoa negra ao STF (Supremo Tribunal Federal) para ocupar a vaga aberta com a aposentadoria de Luís Roberto Barroso daria novas perspectivas para decisões da corte e representaria uma abertura a anseios populares com “melhores níveis de justiça racial”.

O presidente Lula (PT) disse a aliados que deve indicar Jorge Messias, advogado-geral da União, homem branco assim como os demais cotados —o senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG) e o ministro do TCU (Tribunal de Contas da União) Bruno Dantas.

“Esse argumento de ‘alguém de minha confiança’ é uma escolha com finalidades meramente políticas. O cálculo político para agradar alguém também não deveria ser um critério de escolha. A questão da diversidade, definitivamente, sim”, diz Moreira.

Doutor em direito antidiscriminatório pela Universidade Harvard, ele critica a Operação Contenção, defende o julgamento sobre a trama golpista e diz que direitos fundamentais devem servir para todo mundo, tanto homens brancos da Faria Lima quanto negros da periferia.

Além do livro vencedor do Jabuti (“Letramento Racial: Uma Proposta de Reconstrução da Democracia Brasileira”), Moreira lançou recentemente “Por Que os Seres Humanos Sofrem?: Uma Teoria Psicológica dos Direitos Fundamentais”. A obra é descrita por Moreira como a melhor que já escreveu.

“Na faculdade, recebi a mensagem de que deveria pensar como branco, falar como branco”, diz, afirmando resistir enfaticamente a essa pressão por conformidade. “Continuarei sendo eu e acho isso ótimo.”

O presidente Lula deveria escolher uma mulher negra para o STF? Se sim, por que a representatividade é um critério importante?
Eu definitivamente acredito que sim. Uma decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos sobre ações afirmativas na Faculdade de Direito da Universidade de Michigan traz um argumento desenvolvido pela ministra Sandra Day O’Connor. Para ela, esses cursos formam indivíduos que decidirão o destino de todas as pessoas. É muito importante que as faculdades sejam diversificadas, para reconhecer a experiência das pessoas, os argumentos por igualdade que elas trazem e as demandas que elas apresentam perante os tribunais.

Tivemos um avanço significativo nos últimos anos graças à atuação de pessoas negras que fazem parte do sistema judiciário. Em especial, o julgamento com perspectiva racial, que estabelece diretrizes para juízes e juízas em casos que envolvem pessoas negras e questões raciais. Há uma pluralidade de estudos demonstrando que o sistema judiciário não fornece a devida prestação jurídica a pessoas negras.

O presidente Lula deve escolher uma mulher negra ou um homem negro, mas progressista. Uma pessoa que esteja envolvida com as discussões sobre justiça racial. Ele é livre para indicar quem quiser, mas esse argumento de “alguém de minha confiança” é uma escolha com finalidades meramente políticas. O cálculo político para agradar alguém também não deveria ser um critério de escolha. A questão da diversidade, definitivamente, sim.

As decisões do STF pautam a compreensão que temos sobre igualdade, liberdade e critérios de legitimidade para as ações estatais, como o STF determinou na ADPF 635 [ADPF das Favelas]. Então, a indicação de uma mulher negra —uma pessoa que pode apresentar novas perspectivas a partir das quais uma decisão colegiada possa ser tomada— significa uma abertura maior para certos anseios populares, como maiores níveis de justiça racial.

Como o sr. avalia a condução do processo da trama golpista no STF e o direito de defesa dos réus?
Direitos fundamentais existem para proteger tanto os interesses das pessoas responsáveis pela lavagem de dinheiro, que trabalham na Faria Lima e são, na maioria, homens brancos, heterossexuais e de classe média alta, quanto as pessoas negras periféricas, representadas como bandidos e criminosos pelo simples fato de morarem em uma determinada área. Então, direitos fundamentais servem para todo mundo, inclusive para aqueles que fizeram parte da trama golpista.

Mas não podemos esquecer que essas pessoas participaram de processos cujo objetivo era eliminar o Estado democrático de Direito e também têm deveres de cidadania e são obrigadas a respeitar a forma como as instituições públicas operam. Direitos fundamentais não podem ser utilizados de forma estratégica. Essa não é a lógica democrática.

Não houve violação do direito à presunção da inocência. Não houve produção de provas ilícitas, que é algo que acontece com frequência no Brasil, especialmente, no caso de pessoas negras periféricas. Prazos processuais foram respeitados, e as investigações da Polícia Federal foram feitas de forma adequada. Para evitar as acusações de suspeição, talvez pudesse ter sido escolhido outro ministro relator.

O cumprimento de decisões judiciais legitima operações policiais de alta mortalidade, como a realizada nos complexos da Penha e do Alemão?
Toda ação estatal precisa ser justificada, porque vivemos em um Estado de Direito. Além disso, estamos falando de uma operação policial com o objetivo específico de combate ao crime organizado. Isso se faz por meio de planejamento. Para que esse combate seja efetivo, precisamos ter uma compreensão dos motivos pelo qual ele [crime organizado] existe, das pessoas envolvidas, do seu financiamento.

Dentro de um contexto evidentemente eleitoral, um governador de extrema direita que imediatamente se alia a outros de extrema direita para fazer uma defesa de um tipo de segurança pública baseada na eliminação física de pessoas e não procura entender a causa desse problema social não é forma adequada de ação estatal.

Isso tem sido uma prática recorrente em áreas periféricas majoritariamente habitadas por pessoas negras e pobres, que dentro do imaginário social são representadas como inimigos sociais por serem todas supostamente criminosas.

O sr. cita finalidade eleitoral. O que isso revela sobre os motivos e os resultados esperados com essa operação?
Não tenho absolutamente nenhuma dúvida que esse tenha sido um dos principais propósitos. Nós vimos políticos de direita fazendo posts em redes sociais com todos aqueles corpos e dizendo que aquele era o objetivo que pretendiam alcançar. Ou seja, limpeza social, a eliminação daquelas pessoas vistas como indesejáveis.

É uma redução do problema de segurança pública para fora de um contexto mais amplo, de como as disparidades sociais se propagam. Formas sistemáticas de discriminação são as verdadeiras causas.

Pessoas negras e periféricas são representadas como naturalmente criminosas, que nunca poderão desempenhar qualquer tipo de função social, que nunca poderão ser atores sociais competentes e que, portanto, podem e devem ser eliminadas.

Quando a Polícia Federal fez a operação na Faria Lima, a grande imprensa não utilizou o termo bandido, e os políticos não aplaudiram. Esses termos não foram utilizados, mas eles são criminosos, não é? Se nós realmente temos um compromisso de combater o tráfico, essas ações precisam começar exatamente de cima.

O sr. venceu o prêmio Jabuti de 2025 na categoria educação com o livro sobre letramento racial. Qual é o papel desse conceito na superação de crises democráticas em sociedades como a nossa?
A democracia, por ter uma correlação com a ideia de Estado de Direito, é um regime político organizado com a função específica de promover a proteção de direitos fundamentais.

No Brasil, a realidade é de uma sociedade na qual houve 400 anos de escravização de seres humanos, houve políticas estatais com objetivo específico de eliminação e houve políticas imigratórias para privilegiar uma raça sobre a outra.

Há muitas disparidades causadas pela ação do racismo nas suas várias manifestações. Então, apenas o reconhecimento de todos os membros da comunidade política como atores sociais competentes permite nos engajarmos politicamente com eles para produzirmos um consenso social sobre o que é o bem comum. Isso está longe de ser reconhecido no Brasil.

A minha proposta é a de que precisamos de um letramento racial. Ele tem uma dimensão de reconhecimento de responsabilidade histórica e da presença do racismo, mas também é um meio para impedir que esses processos de reprodução de disparidades continuem. O letramento racial ocorre por meio de um uma educação voltada para a democracia. Ele não se reduz a uma discussão sobre o que eu posso dizer em determinados contextos ou sobre cordialidade com pessoas negras.

O sr. lançou recentemente outro livro desenvolvendo o que chamou de teoria psicológica dos direitos fundamentais. O título da obra traz esta pergunta e gostaria que o sr. respondesse: por que os seres humanos sofrem?
No Estado de Direito, temos a presunção de que atores estatais sempre operarão de acordo com a lei. A partir dessa expectativa, as pessoas planejam a própria vida pensando que seus direitos serão respeitados. Então, temos a compreensão que é possível realizar meus planos por meio de direitos.

Se você é sistematicamente submetido a práticas discriminatórias, desenvolverá o que autores chamam de desamparo aprendido, ou seja, a percepção de que não tem controle sobre aspectos básicos da sua vida. Esse sentimento produz estresse emocional, que leva a doenças psicossociais.

Quando olhamos para todas as sociedades humanas, observamos que as pessoas mais vulneráveis a violações de direitos fundamentais também são as mais vulneráveis ao desenvolvimento de doenças psicossociais. Ansiedade, angústia, fobia, ideação suicida, depressão, alguns problemas cardíacos e gástricos são doenças psicossociais causadas pela exposição a práticas discriminatórias.

Os seres humanos sofrem porque a ausência de direitos fundamentais impedem que eles adquiram ou desenvolvam certos elementos fundamentais para a integridade psíquica.

Em que medida essa teoria psicológica se distingue de outras teorias sobre direitos fundamentais?
As teorias clássicas partem do pressuposto de que violações de direitos fundamentais são restrições indevidas de liberdades e benefícios que deveriam estar abertos para todos. Então, entendem direitos como espaços de ação. Isso não é falso, mas o problema é que essas teorias estão baseadas no pressuposto de que a subjetividade humana tem basicamente duas dimensões: moral e racional.

Mas há também a dimensão psicológica dessa subjetividade. Quando as pessoas estão diante de práticas discriminatórias, elas estão sistematicamente sofrendo ameaças identitárias. Um policial que prende uma pessoa negra injustamente não está simplesmente restringindo o direito de locomoção ou apenas violando o princípio jurídico da presunção da inocência. As ameaças identitárias, como o racismo, não afetam apenas uma pessoa negra. Isso gera um sentimento de fragilidade coletiva.


RAIO-X | Adilson José Moreira, 50

É doutor pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), com temporada na Universidade de Yale, e experiência como docente na Universidade de Stanford. Realizou um segundo doutorado na Universidade Harvard e é pós-doutor pela Universidade de Berkeley


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