A eleição municipal de 1985 ficou marcada no imaginário político do país. Embora seja uma das mais importantes da história brasileira recente, costuma ser mais lembrada por uma gafe.
Fernando Henrique Cardoso, então candidato em São Paulo, sentou-se na cadeira de prefeito em 14 de novembro daquele ano, um dia antes do pleito. A foto, que passava a impressão de que ele considerava a vitória garantida, teve repercussão ampla e negativa.
A disputa acabou sendo vencida pelo ex-presidente Jânio Quadros, que voltava a ser prefeito da capital paulista —sua primeira administração se deu de 1953 a 1955.
Mas a relevância do embate daquele ano vai muito além da falta de traquejo político de FHC na época. Foram as primeiras eleições municipais depois da ditadura militar e, nesse sentido, são consideradas um marco na retomada do voto direto.
Aos olhos de hoje, há ainda uma curiosidade: a disputa opôs um ex-presidente, Jânio, a um futuro presidente, FHC.
Além disso, o resultado de São Paulo indicou o quanto o pensamento conservador teria força nas décadas seguintes no país, segundo Edson Teles, professor de filosofia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Para ele, aquelas eleições mostraram “o quanto a política democrática tinha de potencial transformador ao mesmo passo em que sinalizou a forte presença social da direita e dos valores conservadores”.
Depois do golpe em 1964, os brasileiros ficaram 25 anos sem poder escolher o presidente da República, o que só ocorreu em 1989, na disputa vencida por Fernando Collor. No entanto, a primeira eleição municipal pós-ditadura, com voto direto, aconteceu quatro anos antes.
Em maio de 1985, apenas dois meses após a posse de José Sarney, o primeiro presidente civil do Brasil depois do regime autoritário, foi promulgada a emenda constitucional nº 25, um dos símbolos da redemocratização. A medida restaurou o voto direto para os prefeitos das capitais e liberou a participação dos analfabetos.
“Ainda que os ventos soprassem em direção contrária, ou seja, em favor da cidadania e das liberdades democráticas, estruturas como a violência de Estado fundada no racismo contra a população pobre e negra foram mantidas e sofisticadas a partir de 1985”, afirma Teles.
Para ele, a eleição de São Paulo em 1985 também foi marcante ao reunir aquilo que viria a formar as grandes correntes políticas na redemocratização: um candidato de esquerda, Eduardo Suplicy (PT), um de centro-liberal, FHC (então no PMDB e que depois fundaria o PSDB), e um de extrema direita, Jânio (PTB).
Segundo o professor, foi a primeira vez que partidos da esquerda, vindos de décadas de clandestinidade, puderam se apresentar publicamente.
“Apesar de não ser candidato, Lula teve papel importante na votação da chapa petista, com Suplicy e Erundina. Veja que, somados dois grandes nomes desse processo, FHC e Lula, temos os presidentes de 5 dos 10 mandatos da democracia [pós-1985]”, diz Teles.
Nas ruas, notava-se a sombra das Forças Armadas, com militares de alta patente sempre comentando o processo de transição, buscando limitar o alcance das transformações.
Para Teles, aquelas eleições ocorreram sob um clima de incerteza, em parte porque ainda havia estruturas autoritárias em funcionamento. “O aparato repressivo e a presença militar, com as polícias estaduais, deslegitimaram substancialmente o pleito, o que pode ter colaborado para seu apagamento da narrativa sobre a transição democrática”.
O PMDB venceu em 19 das 25 capitais —o Distrito Federal não teve eleição; Tocantins só foi criado três anos depois. O partido estava embalado com o sucesso da campanha das Diretas Já e com a eleição indireta de Tancredo Neves.
As disputas de 1985 integram um processo de passagem do regime autoritário para a democracia, de acordo com Marcus Dezemone, professor de história da UFF (Universidade Federal Fluminense). “Ainda que formalmente não fosse um militar que ocupasse a Presidência naquele momento, as instituições brasileiras ainda estavam perpassadas por aquilo que, na Constituição de 1988, se chamou de ‘entulho autoritário’.”
O simbolismo dessa eleição, diz, foi recuperar para esses municípios a capacidade de uma vida política sem a intervenção do Poder Executivo sob o comando dos militares.
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