
Partidos de centro e de direita hoje majoritários no Congresso Nacional articulam novamente uma mudança no sistema eleitoral que tem objetivos não coincidentes nos bastidores e no discurso público.
Nos microfones, defensores da adoção do chamado “distrital misto” afirmam buscar uma maior sintonia entre eleitor e parlamentar e barrar o ingresso de criminosos na política, discurso que ganhou força após a megaoperação contra o Comando Vermelho, no Rio.
Atrás das cortinas, porém, parlamentares ouvidos pela Folha dizem não ver impacto desse sistema contra a penetração de facções criminosas na política —alguns afirmam, inclusive, que a mudança facilitaria o ingresso.
Para esses congressistas, entre os objetivos do centrão estão ampliar o poder das direções partidárias e as perspectivas de crescimento do grupo, além de reduzir drasticamente o impacto dos “puxadores de voto”, vários deles influenciadores digitais e com discurso antissistema.
A defesa da aprovação do modelo distrital misto foi feita pelo presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), que escolheu como relator da proposta o deputado Domingos Neto (PSD-CE), em movimentação que recebeu elogios públicos do presidente do PSD, Gilberto Kassab.
O ponto de partida será o PL 9.212, de autoria de José Serra (PSDB-SP), aprovado no Senado em 2017 e desde então parado na gaveta da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. Se aprovado, o novo modelo não valeria nas eleições de 2026 (devido ao princípio da anualidade), mas sim a partir da disputa municipal de 2028 (para cidades acima de 200 mil habitantes) e na geral de 2030.
Domingos Neto, designado por Motta relator em abril, diz ter um texto já pronto, aguardando apenas ser marcada a data de votação.
Hoje, a escolha de deputados federais, estaduais e de vereadores segue o sistema proporcional de lista aberta. O eleitor vota em um candidato ou em um partido e os votos de todos os nomes da mesma legenda são somados. Esse total define a quantas cadeiras o partido ou federação terá direito.
Se uma sigla alcançar, por exemplo, três vagas, os três candidatos mais votados dentro dela são eleitos, ainda que outros, de fora do partido, tenham obtido mais votos individuais.
No modelo distrital misto aprovado pelo Senado em 2017, a distribuição das vagas ocorre em duas etapas. Primeiro, o estado é dividido em distritos eleitorais, cada um elegendo um representante —o candidato mais votado na região. Essa fase corresponde à metade das cadeiras disponíveis.
A outra metade é preenchida conforme o voto dado aos partidos. Cada legenda define uma lista pré-ordenada de candidatos (chamada de lista fechada), e as vagas são distribuídas de forma proporcional à votação recebida pela sigla em todo o estado. Assim, o eleitor teria dois votos: um no candidato do seu distrito e outro no partido.
Na prática, o sistema reduz o peso de “puxadores de voto”. Hoje eles levam para o Legislativo vários colegas menos votados. Nikolas Ferreira (PL-MG) e Guilherme Boulos (PSOL-SP), por exemplo, ajudaram a eleger 6 e 2 deputados de seus partidos, respectivamente, com suas votações.
No novo modelo, elegeriam apenas a si mesmos. Minorias, políticos e partidos beneficiários dos chamados “voto de opinião”, mais pulverizados, também tenderiam a perder espaço.
Domingos Neto afirma que seu relatório irá estabelecer que o voto no candidato (na disputa pela primeira metade das cadeiras) conte automaticamente como voto no partido dessa pessoa (a segunda metade), excluindo a necessidade de o eleitor votar duas vezes.
O relator afirma que o principal objetivo do projeto é aproximar o eleitor de seu representante. “Onde se colocou o voto distrital, a motivação é o accountability [prestação de contas]. É você poder cobrar do seu parlamentar. Hoje quase 90% dos eleitores não lembram em quem votou. Isso se altera. O eleitor vai precisar ter uma relação com o seu deputado federal, mais ou menos como tem com o prefeito”, afirma.
Ele diz ter convicção de que o modelo dificultará muito a entrada do crime organizado na política.
“Você conseguiria um mapeamento, entre 2.000 candidatos em São Paulo, quais têm ligação ou não com o crime? Você não vai conseguir. Agora, se no seu distrito tiver dez candidatos, a imprensa, o Ministério Público e os adversários políticos jogarão holofote sobre a disputa. É muito mais complexo que as facções criminosas consigam participar de um processo eleitoral sob holofote, que é uma coisa que ela não gosta.”
Críticos da medida discordam. “O argumento sugere que a geografia do voto seria suficiente para barrar organizações criminosas, como se facções que controlam territórios pudessem ser ‘afastadas’ por redesenho eleitoral. A lógica ignora a realidade brasileira: o crime já infiltra aparelhos públicos, financia candidaturas e controla áreas justamente pela ausência do Estado”, diz análise do Diap (Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar) publicada na última segunda-feira (3).
Juliana Sakai, diretora-executiva da ONG Transparência Brasil, afirma que a simples troca do atual sistema eleitoral proporcional por um sistema distrital ou distrital misto não tem a capacidade de impedir o avanço do crime organizado na política. “Tivemos casos de eleição de prefeitos em 2024 ligados ao crime organizado, e não foi o sistema majoritário que impediu essas eleições”, comenta.
Segundo ela, em um sistema distrital existe o risco de haver distritos eleitorais em que uma organização criminosa tenha representatividade o suficiente para eleger seus candidatos ou coagir e cooptar lideranças políticas.
“Se o intuito real do Congresso é evitar o financiamento da política pelo crime, deveríamos priorizar o fortalecimento da Justiça Eleitoral e do sistema de prestações de contas de eleições e de partidos.”
Tanto críticos como congressistas apontam ainda a possibilidade de uma definição de distritos que beneficie os grupos que hoje comandam o Congresso, abrindo espaço para uma queda de braço similar à hoje vista nos Estados Unidos, onde republicanos e democratas patrocinam redesenho de distritos com o objetivo de aumentar suas forças no Capitólio.
Além das críticas, a atual tentativa de mudar o modelo eleitoral esbarra em um amplo retrospecto de derrotas no próprio Congresso, que nos últimos anos rejeitou várias outras propostas de mudança, entre elas o próprio distrital misto e o “distritão” (que elege os mais votados, sem contar o peso dos partidos).
ENTENDA OS MODELOS
ELEIÇÕES PROPORCIONAIS (ATUAL)
Cargos: deputados federais, estaduais/distritais e vereadores
O eleitor vota:
- Em um candidato ou
- Diretamente em um partido/federação
- Somam-se os votos de todos os candidatos e do partido
- Calcula-se o quociente eleitoral (votos válidos dividido pelo número de vagas)
- Cada partido/federação recebe um número de cadeiras proporcional à sua votação total
- São eleitos os mais votados dentro de cada partido até completar o número de vagas conquistadas
Exemplo:
- Estado tem 10 cadeiras
- Partido A faz votos suficientes para 3 cadeiras
- Os 3 candidatos mais votados do Partido A ficam com as vagas
Efeitos:
- Candidatos “puxadores de voto” podem eleger colegas com votação baixa
- Campanhas tendem a ser mais caras, feitas em todo o estado
- O eleitor muitas vezes não sabe quem é o seu representante direto
- O poder de decisão fica mais centrado no desempenho individual do candidato
DISTRITAL MISTO
Cada estado (ou município) seria dividido em distritos eleitorais, equivalentes à metade das cadeiras disponíveis.
Exemplo: 70 deputados federais (São Paulo) → 35 distritos.
- O eleitor vota em candidato do seu distrito (voto nominal)
- Esse voto conta para o partido, que tem uma lista pré-ordenada de candidatos
Metade das cadeiras vai para:
- Os candidatos mais votados em cada distrito (sistema majoritário)
A outra metade é distribuída:
- Entre os partidos, conforme o total de votos partidários no estado
- As vagas são preenchidas na ordem da lista apresentada por cada legenda
Exemplo:
- Estado tem 10 cadeiras → 5 distritos + 5 vagas partidárias
- 5 candidatos eleitos diretamente nos distritos
- Os outros 5 vêm da lista do partido, conforme o total de votos partidários no estado
PRÓS E CONTRAS DO DISTRITAL MISTO
Prós:
- Aproxima eleitor e representante (cada distrito tem um deputado conhecido)
- Reduz o custo das campanhas (área menor de atuação)
- Fortalece os partidos e diminui o peso dos “puxadores de voto”
- Pode reduzir a fragmentação partidária
- Defensores dizem que modelo dificulta penetração do crime organizado por jogar holofote nas disputas
Contras:
- Tira peso do voto de opinião e de candidatos que representam minorias
- Risco de oligarquização local (distritos dominados por famílias ou grupos regionais)
- Menor liberdade de escolha individual, já que parte das vagas vem de listas partidárias
- Fortalecimento de feudos partidários e ‘vereadorização’ de deputados estaduais e federais
- Críticos afirmam que não trava a penetração do crime, que já tem eleito prefeitos suspeitos de ligação com facções
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