
(FOLHAPRESS) -“Em uma noite de insônia, meu irmão inventou o cinema”, teria dito Auguste Lumière sobre Louis Lumière, na época em que ambos desenvolveram o cinematógrafo. Ao menos é o que afirma Thierry Frémaux em “Lumière! A Aventura Continua”. O documentário recupera o aparelho precursor das filmagens e projeções de imagens em movimento como um objeto de fascínio para o cineasta francês.
Lançado nesta quinta-feira, 18, o filme chega ao Brasil nove anos depois da primeira produção, que também reunia mais de uma centena de curtas da dupla. Entre cenas pouco conhecidas do século 19 e outras que se tornaram populares ao longo da história, o diretor do Instituto Lumière narra os materiais escolhidos e revela sonhos que o tempo não apagou.
“Não conheço nenhum filme que seja antigo. Nós nunca dizemos que um Shakespeare é antigo, que um Mozart é antigo ou que um Van Gogh é antigo. Então por que um filme mudo e em preto e branco é considerado antigo?”, disse Frémaux durante uma passagem por São Paulo. A atuação simultânea de inventores como Thomas Edison e cineastas como Georges Méliès gerou dúvidas entre historiadores do cinema, e Frémaux defende que os irmãos Lumière nunca receberam o reconhecimento devido.
“Eu queria que as pessoas pudessem escolher entre um filme de Kleber Mendonça Filho, de Paul Thomas Anderson e dos Lumière ao comprar um ingresso. Queria explorar o trabalho deles em uma hora e meia e mostrar que ainda há motivos para ir ao cinema e para o público aprender mais sobre si.”
A menção ao cineasta pernambucano não é casual. Habituado a frequentar várias sessões no mesmo dia, Frémaux dorme pouco e se encaixa no perfil ideal para comandar tanto o instituto dedicado aos arquivos e mostras dos Lumière quanto o Festival de Cannes, o mais importante evento do cinema mundial.
Na edição de 2025, o filme “O Agente Secreto” conquistou os prêmios de melhor direção, melhor ator para Wagner Moura e melhor filme segundo a crítica. Apesar do reconhecimento, não é o primeiro longa do brasileiro que Frémaux destaca. Ele relembra “Retratos Fantasmas”, documentário de Kleber Mendonça Filho exibido no festival em 2023. As duas obras, cada uma à sua maneira, abordam o declínio dos cinemas de rua no Recife.
“A primeira viagem que fiz pelo Festival foi para o Brasil. Era o ano em que Karim Aïnouz lançava ‘Madame Satã’. Mais tarde, conheci os filmes de Fernando Meirelles, passei a admirar Walter Salles por ‘Linha de Passe’ e a paixão só cresceu. Sempre soube que o Brasil era uma grande terra do cinema”, afirmou Frémaux.
Em visita à capital paulista, ele apresentou “A Aventura Continua” na Cinemateca Brasileira e participou de um bate-papo com Walter Salles, diretor de “Ainda Estou Aqui”. Após a campanha que rendeu ao Brasil seu primeiro Oscar, Salles também precisou se adaptar a poucas horas de sono, como contou à reportagem.
“Depois de um tempo, o Brasil desapareceu. Mas algo o trouxe de volta e novos autores surgiram. Isso mostra que um país do cinema nunca morre e que teremos um futuro marcado pela união entre artistas do mundo todo”, disse o francês. Ainda assim, a seleção de Cannes neste ano gerou críticas pelo excesso de produções americanas e europeias e pela escassez de títulos de regiões como a África.
O cinema oriental, por outro lado, mesmo com presença reduzida, saiu premiado. A abordagem experimental de “Resurrection”, dirigido pelo chinês Bi Gan, encantou o júri pela estranheza e levou à criação de um prêmio especial. O filme funciona como uma carta de amor ao cinema e celebra os Lumière, apesar da distância geográfica entre a França e a Ásia.
“Poucos diretores continuam diretamente o legado deixado pelos irmãos, mas talvez tragam as mesmas questões que estavam na cabeça deles. ‘O que faço com minha câmera?’, ‘Qual é a melhor posição?’, ‘Que história quero contar?’”, disse Frémaux. “Também gosto da ideia de que a música chinesa não é igual ao rock de Londres, assim como a música brasileira não é a música francesa. Mas é bom que um chinês se inspire nos Lumière. Ao usar a câmera para construir uma imagem do mundo, falamos a mesma língua.”
No documentário, Frémaux investiga filmagens de diferentes tipos. Algumas observam centros urbanos e se destacam pela quantidade de pedestres. Outras priorizam a natureza, mostrando planícies cortadas por trens ou o mar tomado por ondas. Há espaço também para pequenas narrativas com menos de um minuto.
Ao citar Mendonça Filho, Frémaux aborda o encontro entre realidade e fantasia. “Os filmes de ficção são os melhores documentários.” Em maio, muitos filmes exibidos em Cannes flertaram com o fantástico. “Sirât” construiu uma rave espiritual para discutir a humanidade. “O Som da Queda” usou o terror como metáfora da opressão feminina. “O Agente Secreto” revisitou a ditadura militar à luz de lendas urbanas.
“A fantasia é cinema. Tudo é cinema e existem inúmeros estilos. Hoje, o cinema de autor é muito valorizado, mas também precisamos observar os rumos do cinema mainstream. Essas produções vêm se fragilizando, e é importante lembrar que o sucesso de filmes comerciais ajuda os filmes de autor.”
Frémaux recorda que selecionou, quase vinte anos atrás, “O Labirinto do Fauno”, de Guillermo del Toro, como o primeiro filme de fantasia exibido em Cannes. Hoje, o cineasta mexicano concorre ao Oscar com sua adaptação de “Frankenstein”, produzida pela Netflix. Segundo Frémaux, a escala do projeto não combina com telas de celular ou plataformas de streaming, embora reconheça que esses serviços facilitam suas maratonas e que sua cinefilia nasceu da televisão.
Ele afirma estar animado para assistir a “A Odisseia”, de Christopher Nolan, filmado em IMAX. “Não deveríamos discutir se um filme deve ser rodado em película ou em digital. Deveríamos discutir o cinema como um ato social. Quando uma sala de cinema fecha, ela fecha para sempre.”
Frémaux não vê ingenuidade nos filmes dos Lumière. As redes sociais amplificaram as imagens do cotidiano e trens que antes assustavam o público deixaram de causar impacto há décadas. Manter os jovens atentos no escuro da sala de cinema tornou-se um desafio.
“Precisamos trabalhar com as novas gerações. É o que tentamos fazer no Instituto Lumière. Cerca de 60 mil jovens passam por lá todos os anos, em sessões para 300 pessoas. O espaço é agitado, barulhento, mas quando o filme começa, tudo muda em segundos.”
“Tem sido difícil despertar curiosidade e levar as novas gerações às salas de cinema, onde ficarão horas sem usar o celular ou fazer outra coisa. É uma forma de recuperar o controle sobre a própria vida.”
Sobre a obsessão em torno da Palma de Ouro, Frémaux se mostra indiferente. “Não assisto a um filme porque ele ganhou um prêmio. Quando jovem, eu não ligava para os filmes em competição. Preferia ver filmes desconhecidos. Eu me orgulhava de assistir ao que o grande público deixava passar.”
Fonte: Notícias ao Minuto




