
Há 80 anos, em 29 de outubro de 1945, Getúlio Vargas renunciava à Presidência da República. O ato, feito sob exigência dos militares, pôs fim à ditadura do Estado Novo, que, de 1937 a 1945, prendeu, exilou e torturou opositores, centralizou o governo e inseriu o Brasil na Segunda Guerra Mundial.
Apesar de ser hoje menos lembrado que a ditadura de 1964, o Estado Novo utilizou muitos artifícios semelhantes ao regime que viria quase duas décadas depois.
Para perseguir opositores, Vargas criou o TSN (Tribunal de Segurança Nacional), vinculado ao Superior Tribunal Militar, após a Revolta Comunista de 1935, ainda sob governo constitucional.
No TSN, os processos contra os acusados ocorriam em um prazo de apenas cinco dias, e só era possível recorrer ao próprio tribunal para uma alteração na sentença.
Entre 1936 e 1937, antes do autogolpe de Vargas, 1.420 pessoas foram condenadas pela corte, segundo a FGV (Fundação Getúlio Vargas). Do início do Estado Novo até a renúncia de Getúlio, mais de 10 mil pessoas foram julgadas e 4.099, condenadas pelo tribunal.
Números exatos sobre o saldo de vítimas do Estado Novo não são conhecidos, já que não houve uma iniciativa como a Comissão Nacional da Verdade, que identificou e catalogou os abusos cometidos pela ditadura militar.
Apesar disso, documentos do período relatam o cenário de crimes cometidos. Entre os presos pelo regime, estão os militantes comunistas Luís Carlos Prestes e Carlos Marighella, os escritores Graciliano Ramos e Monteiro Lobato e a artista, intelectual e ativista Patricia Galvão, a Pagu. Prestes, Marighella e Pagu relataram terem sido torturados.
A polícia política varguista era comandada por Filinto Müller, chefe de polícia do Distrito Federal (à época a cidade do Rio de Janeiro). Müller havia integrado o movimento tenentista e fez parte da Coluna Prestes, mas foi expulso pelo futuro líder comunista por ameaçar desertar do movimento.
O comando da máquina de tortura pelo militar tinha o componente de “quase como uma vingança pessoal contra Prestes”, diz Alberto Cantalice, dirigente do PT e da Fundação Perseu Abramo, que coordena o projeto Memorial da Democracia.
Os comunistas, especialmente os acusados de envolvimento na Intentona de 1935, eram alvos preferenciais da tortura varguista. Arthur Ewert, um militante e ex-deputado alemão, foi preso e torturado por meses ao longo de 1936.
“Tem uma cena de arrepiar os cabelos: com ele amarrado, os carrascos colocam um arame dentro da uretra dele, deixam a ponta para fora e esquentam o arame com um maçarico”, conta Fernando Morais, jornalista e autor do livro ‘Olga’, que relata a história de Olga Benário, esposa de Prestes, judia e comunista, entregue por Vargas para ser morta pela Alemanha nazista em 1936, pouco antes do Estado Novo.
Já no período ditatorial, a máquina repressiva se fortaleceu. Pagu foi presa e torturada por oposição ao regime; foi libertada em 1940. Hermínio Saccheta, jornalista que atuou na Folha da Noite na década de 1940 e na Folha de S.Paulo na década de 1970, ficou detido entre 1938 e 1940 por suas ligações com o Partido Comunista, de onde havia sido expulso um ano antes.
Casos de tortura foram reunidos pelo jornalista David Nasser em textos publicados na revista O Cruzeiro e depois compilados no livro “Falta Alguém em Nuremberg”, que faz referência ao tribunal que julgou os crimes dos nazistas após a Segunda Guerra. O “alguém” do título é Filinto Müller.
Morais classifica a tortura do período como “selvageria”. “Era um negócio de uma brutalidade nunca vista.”
Para ele, uma diferença em relação à ditadura militar é o perfil das vítimas. Enquanto o Estado Novo se voltou contra os comunistas revoltosos de 1935 e os integralistas que tentaram um golpe em 1938, a ditadura militar perseguiu opositores dentro do Exército, em órgãos públicos e também políticos até mesmo conservadores, como Carlos Lacerda.
Com o fim da ditadura varguista e a redemocratização do país, houve duas tentativas de investigação aos crimes políticos do regime, ambas lideradas pelo general Euclides Figueiredo, pai do futuro ditador João Figueiredo (1979-1985). Euclides foi condenado e preso pelo TSN acusado de ter participado da organização do levante integralista de 1938.
Eleito deputado pela UDN, de oposição a Vargas, ele conseguiu que a Assembleia Constituinte de 1946 instalasse uma Comissão de Inquérito para apurar abusos do regime, mas a investigação não foi à frente, e as reuniões do órgão raramente tinham quórum para seguir. A constituinte encerrou sem nenhum relatório sobre o tema.
O deputado conseguiu que uma nova comissão fosse instalada na Câmara. Apesar de ter maior sucesso inicialmente, essa comissão também perdeu força e foi encerrada sem relatório.
Cantalice cita que os próprios comunistas se aliaram a Vargas no último ano da ditadura, participando do movimento queremista, que pretendia a manutenção do ditador no poder, mas como presidente constitucional, o que ajudou a melhorar sua imagem.
“Se os comunistas, maiores vítimas do Estado Novo, sobem no palanque do Getúlio, então aos olhos do povo ele estava certo. É a mesma coisa que [seria se] a esquerda subir no palanque do [ditador João] Figueiredo”, diz.
Mesmo com flagrantes violações dos direitos humanos (conceito ratificado apenas posteriormente ao fim do Estado Novo), os crimes da Era Vargas são menos lembrados em relação aos abusos do regime militar e têm menor impacto no legado percebido de Getúlio.
Para Morais, isso ocorre devido a um sentimento pró-getulista na sociedade à época, pela consolidação de direitos trabalhistas, industrialização do país e melhora na qualidade de vida da população. Esse sentimento teria sido chancelado pela eleição de Eurico Gaspar Dutra, candidato de Vargas à própria sucessão, em 1945.
“O sentimento pró Vargas existia sobretudo nos mais pobres e também em quem tinha algum sentimento de soberania, de nacionalidade. Esse sentimento era mais forte porque a repressão foi pontual, não generalizada como na ditadura de 1964”, diz.
Cantalice concorda. “O Getúlio de 1950 é o fundador do Estado moderno brasileiro. É o primeiro gestor a colocar o trabalhador no governo. O que fica é mais positivo do que negativo.”
Veja mais em Folha de S. Paulo



