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Opinião – Lorena Hakak: A desumanização a serviço do extremismo

Os primeiros minutos do filme Feliz Natal (2005) são impressionantes. Nos deparamos com uma terra vazia, onde balas voam de um lado para o outro. Não há vida —ou, ao menos, parece que não há. Em algum momento, pessoas emergem de buracos cavados na terra. São as trincheiras francesas, escocesas e alemãs. Estamos em 1914, no primeiro ano da Primeira Guerra Mundial. O filme, baseado em fatos, é um dos mais bonitos que já vi. Recomendo.

De um lado, escoceses e franceses lutam contra seus vizinhos alemães. O objetivo é avançar nas trincheiras inimigas. Não importa o número de vítimas. A morte assume o papel de protagonista nesse território inóspito. O inimigo sem rosto deve ser combatido de qualquer maneira.

Tudo muda na noite de Natal. Os soldados saem das trincheiras e entram na terra de ninguém —o território que separa as linhas inimigas. Como por mágica, os sem rosto ganham vida e histórias, e todos celebram juntos a noite de Natal.

No dia seguinte, torna-se impossível atirar para o outro lado. Os sem rosto agora têm nome, endereço e família. O desconhecido inimigo desaparece e o humano volta à superfície.

A desumanização do outro serve a diversos fins. Um inimigo sem rosto e sem nome é mais fácil de combater —até de matar. Em diversos momentos da história vimos isso acontecer, com maior ou menor intensidade. Talvez, em termos numéricos, infelizmente, o Holocausto judeu esteja na primeira fila. A desumanização foi tamanha que assassinar um judeu era considerado normal e aceitável. Essa barbárie não ocorreu de um dia para o outro: foi se instaurando aos poucos. A sociedade alemã foi testada em seus limites até chegar à máquina de extermínio.

A história africana também foi marcada por um processo de desumanização por parte dos europeus, que possibilitou a construção da figura do africano como escravo, transformando-o em mercadoria. Assim, milhões de africanos foram levados à força e vendidos na Europa e, principalmente, nas Américas, onde muitos morreram no caminho. Mesmo após o fim da escravidão, os negros permaneceram à deriva, por muito tempo, tratados como cidadãos de segunda classe.

Infelizmente, ainda hoje presenciamos casos de antissemitismo e racismo que têm se intensificado com o avanço do extremismo. Outro fenômeno preocupante é a vilanização dos imigrantes. Se antes o imigrante era visto como um empreendedor em busca de uma vida melhor, hoje, em muitos discursos políticos, ele é retratado como o “inimigo”, alguém violento, que rouba empregos e ameaça a ordem social. Tema tratado por mim na coluna “E se a imigração for a solução?“.

No mundo em que vivemos, de guerras de narrativas e de lados polarizados, o outro se torna um inimigo a ser combatido. Não importa se à direita ou à esquerda: o extremismo faz suas vítimas. Da falta de comunicação e de contato, prospera a desumanização. Assim, aquela pessoa deixa de ser “humana” e pode ser segregada, presa ou apagada da existência.

O crescimento da violência política é um efeito direto desse processo. Pessoas sem rosto ou sem nome são mais fáceis de serem

transformadas em “inimigos”, e o discurso extremista encontra um terreno fértil para vingar. Essa lógica não se restringe às guerras, mas também está presente na polarização em ambos os espectros políticos, alimentada pela intolerância e pelo fim do diálogo. Nunca foi tão difícil escutar e respeitar o outro —as redes sociais estão aí para provar.

Precisamos, urgentemente, como no filme, celebrar a noite de Natal, um gesto de reconciliação que devolva humanidade à terra arrasada pela desumanização. Só o diálogo e a escuta do contraditório permitirão combater o extremismo.


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