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Filho de Herzog cobra justiça após 50 anos e vê demora para rever anistia como passaporte para golpe

Um dos maiores baques provocados pelo assassinato do jornalista Vladimir Herzog pela ditadura militar, na visão de Ivo Herzog, seu filho mais velho, é o fato de que o crime poderia ter ocorrido com “qualquer um”.

Ivo, 59, ainda exige justiça pelo crime que completa 50 anos em 25 de outubro. Herzog, diretor da TV Cultura, compareceu de forma espontânea ao DOI-Codi do Exército, em São Paulo, para explicar sobre suas relações com o PCB, principal organização de esquerda do país –e refratária à luta armada contra a ditadura.

Morreu no local após intensas sessões de tortura e teve a morte divulgada como suicídio pelo regime, provocando revolta pública em diversos setores da sociedade.

Os responsáveis nunca foram julgados e os processos judiciais sobre o caso foram derrubados com base na Lei da Anistia de 1979, que concedeu perdão aos militares que cometeram crimes durante a ditadura.

Ao receber a Folha na última segunda-feira (13), na sede do Instituto Vladimir Herzog, do qual preside o conselho, Ivo disse que a demora do STF (Supremo Tribunal Federal) em revisar a Lei da Anistia, parada desde 2014 na corte, abre brechas para novas tentativas de golpe –uma referência ao processo que levou à condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) a mais de 27 anos de prisão.

À frente do instituto, Ivo se dedica a preservar o legado de Vlado, como era conhecido Herzog: um homem “de carne e osso” que conversava na língua materna com a mãe –era iugoslavo, nascido em uma cidade que fica hoje na Croácia–, gostava de trens elétricos e que foi morto por viver a própria vida, “em cima do que acreditava ser certo”, nas palavras do filho.

Por que é importante retificar as certidões de óbito de mortos e desaparecidos na ditadura?

A certidão é necessária para lidar com contas bancárias, vender um imóvel. Ter um documento que é cúmplice do crime que aconteceu é quase um processo de tortura continuada, causou muito sofrimento às famílias. Não é justiça ainda, mas é um passo formal, institucional, na busca por ela.

O que significa justiça para o senhor?

Investigar as circunstâncias de cada uma das mortes e desaparecimentos, quem foram os autores, e os mesmos serem julgados, mesmo que já tenham falecido.

O que falta elucidar sobre o assassinato do seu pai?

Não é bem elucidação, é a questão, usando um termo da moda, de ser executado o devido processo legal pelos órgãos públicos. As denúncias serem feitas pelo Ministério Público, os casos serem levados a julgamento e os réus serem julgados.

Não há nenhuma sinalização de quando o STF fará a revisão da Lei da Anistia?

No ano passado, o ministro Dias Toffoli [relator do caso no STF] havia prometido que o tema seria levado ao plenário, teriam audiências públicas, e isso não aconteceu. Vejo como uma atitude cúmplice à cultura de impunidade dos agentes públicos no Brasil. O que, em última análise, é um passaporte de livre acesso para tentativas de golpe.

E os pedidos recentes por anistia a Bolsonaro e ao 8 de Janeiro?

São propostas semelhantes, de que quem atenta contra o Estado tem que ser perdoado. A história republicana do Brasil teve dezenas de tentativas de golpe, algumas bem-sucedidas, sempre com dois pontos em comum: a participação de militares e o fato de nunca ninguém ter sido punido. A primeira vez que temos alguém punido é por 2022 e pelo 8 de Janeiro, e a gente espera que isso seja determinante para coibir novas tentativas.

O senhor acha exaustivo cobrar o Estado por justiça?

Não é exaustivo, é sofrido. Mas a gente não vai se cansar dessa luta. Para mim, a doença da minha mãe [Alzheimer] tem a ver com esse sofrimento, com essa luta de anos buscando justiça, todo o desgaste e estresse emocional.

Em 1975, um artista carimbou a frase “quem matou Herzog?” em cédulas de dinheiro. Faltam ações semelhantes hoje?

Não sei o número exato, mas ao menos dois terços dos brasileiros não tinham nascido quando acabou a ditadura. É difícil cobrar entendimento de quem não viveu.

O grande valor do filme “Ainda Estou Aqui“, do Walter Salles, é sentir um pouco do que era viver naquela época. Não é só contar a história de um desaparecido ou do que a Eunice Paiva fez, mas é o toque da campainha, do telefone, ser preso com o seu filho, ouvir gritos de tortura, toda essa angústia que a gente sofreu. Agora, memória nunca é demais e a gente não tem uma boa tradição com instrumentos públicos de memória.

Algum evento foi mais marcante para entender a dimensão da morte do seu pai?

Acho que não, porque são coisas de naturezas diferentes que se agregam. Teve a primeira retificação do atestado de óbito, em 2012, e foi impressionante a quantidade de pessoas que estavam presentes. Numa visita à escola estadual Vladimir Herzog, onde havia uma instalação cultural sobre Vlado, os estudantes contaram toda a história dele, em uma pesquisa muito bem-feita, e choraram falando que ele foi um herói, que derrubou o governo. É um imaginário forte. No lançamento do instituto [em 2009], 2.000 pessoas foram e a gente achava que as pessoas se esqueceriam em algum momento.

Isso ainda te surpreende?

Sim, surpreende. Na semana passada fui à farmácia comprar um remédio que exigia receita e o atendente viu o nome Ivo Herzog: “O que o senhor tem a ver com o Vladimir Herzog, jornalista?”. Tem acontecido mais, inclusive, porque está com muita publicidade agora.

Não valeu a pena perder meu pai, nunca vai valer a pena perder meu pai, mas o legado dele nos deixa muito felizes. Falam com muita positividade sobre ele. Traz uma realização importante de que cuidamos bem desse legado, que realmente não é só na cabeça da família que ele era uma pessoa boa.

Isso é um sentimento público. Quando saiu o acordo de pensão vitalícia para a minha mãe, os comentários nas redes sociais foram muito positivos. De maneira geral a família é tratada com muito carinho pelo público. Isso mexe com a gente.

Como é viver o seu luto particular dentro de um luto coletivo?

Em 2019, o Itaú Cultural promoveu uma exposição sobre a vida do meu pai e eu não conhecia mais da metade do material. Quando se fala sobre a morte dele, há um imaginário em torno da figura mística do jornalista.

A exposição mostrou que ele era um homem de carne e osso, mais um que simplesmente estava vivendo a vida dele, em cima do que acreditava ser certo, e isso foi o suficiente para o matarem. Um homem de 1,68m, calvo, meio franzino, que gostava de pesca, cinema, fotografia, bichos e que nunca tirou carteira de motorista. Podia ser qualquer um de nós. Talvez esse seja o perigo do crime que foi cometido: poderia ser qualquer um de nós.

Tem alguma lembrança que nunca compartilhou sobre ele?

Durante uma época em que ele teve barba, me lembro de um dia chegar no banheiro e encontrar uns pelos na pia, porque ele tinha aparado. Fiquei traumatizado [risos]. Ele teve barba por um período curto, tanto que são poucas as fotos dele assim, mas tenho essa memória.

Outra lembrança afetiva muito forte, muito gostosa, é de quando ele ficava conversando com a minha avó em iugoslavo. Você não entendia nenhuma palavra, mas no meio da frase tinha um “né?”, um “então”, algo em português no meio daquela língua estranha.

Ele tinha hobbies também. Tenho um trenzinho elétrico na minha casa que tem peças que foram compradas pelo meu pai e outras peças que comprei com o meu filho, que também gosta. Continuamos investindo nesse hobbie. A gente é um pouco do que os nossos pais são, desenvolve alguns dos hábitos. Meu irmão gosta muito de pescar, eu não gosto. Ambos gostam de fotografia e bichos, acho que isso tem muito a ver com ele mesmo, porque minha mãe nunca foi tão ligada a essas coisas, era muito focada no trabalho e gostava muito de ler.

O senhor citou o filme “Ainda Estou Aqui”. Respeitadas as proporções, identificou algo da sua mãe na Eunice Paiva?

Com certeza. São mulheres muito diferentes, tanto na idade quanto na classe econômica, a Eunice tinha cinco filhos, minha mãe só teve dois. Mas lutaram contra o sistema, entendiam a importância de não só saber o que aconteceu, mas de provar, com um documento público oficial, o que aconteceu. As cenas da Eunice dirigindo o carro, levando a família para lá e para cá, dando conta da situação, aquilo era a minha mãe total.

Por que decidiram recriar um ato inter-religioso na Sé [previsto para o próximo sábado, dia 25] em homenagem ao seu pai, como em 1975?

Queremos mostrar que a busca por paz, justiça e democracia é um valor comum, independentemente da religião. É um instrumento de memória: aconteceu há 50 anos naquela catedral um momento de virada, o início do fim da ditadura, que ainda levou mais dez anos. Também há a defesa da democracia: se era uma coisa dada, de repente a gente descobre que é frágil e que por um triz não voltamos a um novo período de autoritarismo. Temos que sair da nossa zona de conforto de achar que está tudo resolvido e estar sempre reafirmando a defesa da democracia.

Qual o maior avanço democrático desses 50 anos?

Não estou esquecendo do passado, mas do ponto de vista recente, uma mudança histórica é ter militares presos. Como já disse, houve tentativas e golpes na nossa história, sempre com a presença dos militares e com total impunidade. A gente está rompendo esse ciclo. Isso dá outra intensidade àquela luz no fim do túnel e nos faz acreditar que estamos vivendo num país diferente.


RAIO X | IVO HERZOG, 59

Filho de Vladimir e Clarice Herzog, nasceu em Londres e mudou-se para o Brasil com os pais e o irmão aos dois anos de idade. Engenheiro, preside o conselho do Instituto Vladimir Herzog, criado para preservar o legado de seu pai e promover a democracia e os direitos humanos.


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