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Tese encampada por Fux em julgamento de Bolsonaro expõe lacuna entre norma e tecnologia

Uma tese encampada pelo ministro Luiz Fux e evocada pelas defesas do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e de réus da trama golpista revela o descompasso entre prazos fixados em lei e a realidade da produção de provas digitais em processos criminais no Brasil.

Advogados reclamaram do volume de provas e do tempo dado para analisá-las. O argumento de cerceamento de defesa, que poderia levar à anulação do julgamento se comprovado, foi acolhido por Fux, mas rejeitado pela maioria dos ministros da Primeira Turma do STF (Supremo Tribunal Federal).

De acordo com especialistas, para além do caso específico, a tese de defesa expõe como prazos estabelecidos em legislação e a massa de provas, sobretudo digitais, produzida atualmente em investigações de maior porte podem estar em desarmonia no país.

Críticas ao volume de provas e ao ritmo impresso no andamento do processo no STF marcaram a fala das defesas dos acusados da trama golpista no segundo dia de sessão de julgamento.

O advogado Matheus Milanez, representante do ex-ministro do GSI (Gabinete de Segurança Institucional) general Augusto Heleno, tratou da impossibilidade de análise das provas colhidas na investigação em uma apresentação em slides.

Celso Vilardi, advogado de Bolsonaro, disse: “Com 34 anos, é a primeira vez que venho à tribuna, com toda a humildade, para dizer o seguinte, eu não conheço a íntegra desse processo. Eu não conheço. O conjunto da prova, eu não conheço. São bilhões de documentos”.

A referência ao volume de provas durante a sessão de julgamento variou de 70 a 80 terabytes. Um armazenamento de 75 equivale a cerca de 19 milhões de fotos, 37 mil horas de filmes em alta resolução ou 487 milhões de páginas de documentos.

Fux falou em “tsunami de dados” e “document dump [despejo de documentos]”. “Até para mim, elaborar esse voto foi motivo de extrema dificuldade. Eu vou dizer por quê. Não é um processo simples. (…) Salta aos olhos a quantidade de material probatório envolvido”.

A professora de direito processual penal da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) Manuela Abath considera que um volume de 70 a 80 teras, como mencionado pelas defesas, torna praticamente impossível a análise completa nos prazos legais.

“Quando há um tipo de diligência que obtém esses dados, seja diretamente, pelo acesso a celulares ou computadores, seja pela requisição de acesso à nuvem, na prática, obtém-se um volume quase impossível de ser acessado no todo.”

“O mundo digital tem uma capacidade de armazenamento de informação que desafia nossa capacidade de acessar”, continua. Mas “não temos um capítulo, um regramento específico para a prova digital, então os prazos são os mesmos”.

O trâmite da ação penal da trama golpista seguiu as regras previstas no regimento interno do STF, no Código de Processo Penal, de 1941, e na lei nº 8.038, de 1990, que regulamenta normas para processos criminais no Supremo e no STJ (Superior Tribunal de Justiça).

A PGR (Procuradoria-Geral da República) formalizou a acusação contra Bolsonaro em 18 de fevereiro. No dia seguinte, Alexandre de Moraes mandou notificar as defesas e abriu prazo de 15 dias para apresentarem resposta.

Em 27 de junho, o ministro mandou intimar as partes para apresentarem as alegações, última etapa de tramitação do processo antes do julgamento. Acusação e defesas tiveram 15 dias sucessivamente para apresentar as últimas manifestações sobre o caso.

Maíra Salomi, vice-presidente da Comissão de Direito Penal do IASP (Instituto dos Advogados de São Paulo), avalia que, teoricamente, o volume de provas e o ritmo de julgamento podem levantar dúvidas sobre a garantia de ampla defesa.

“Isso gera um cerceamento de defesa? A meu ver, sim, porque, se você não pode analisar a prova toda que está no processo, se você não tem tempo hábil para analisar, você não consegue produzir teses defensivas a contento”, afirma Salomi.

O problema, segundo ela, é que a análise depende de cada caso —cabe ao magistrado à frente do processo verificar se a magnitude do volume de provas justifica um prazo mais elástico, em detrimento da rapidez de tramitação do processo, que também é um direito.

Até quem se manifesta a favor do julgamento, como o ex-ministro Miguel Reale Júnior, critica o tempo para apreciar as provas. À Folha ele disse que “o tamanho do processo e o conjunto tão elevado de elementos probatórios exigiria que se concedesse mais tempo“.

Como mostrou a Folha, Moraes atuou no limite dos prazos previstos na legislação para garantir que o julgamento do mérito ocorresse ainda neste ano —e, assim, evitar a contaminação do processo pelo calendário eleitoral do próximo ano.

Presidente do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), Guilherme Carnelós diz que a celeridade do processo é um direito do réu, não pode ser usada para prejudicá-lo, e que o ritmo acelerado pode comprometer a legitimidade do julgamento.

“Quando vejo processos conduzidos a toque de caixa, vejo geralmente um atropelo que prejudica a defesa”, afirma Carnelós. Ele diz que o Ministério Público costuma ter mais tempo e mais estrutura para formular a acusação.

O advogado alerta para a criação de um precedente sobre a falta de tempo para análise dos casos. “E quem vai pagar o preço? Todo o restante das pessoas periféricas, vulneráveis, pobres e pretas que estão submetidas a um sistema carcerário, ao sistema de justiça criminal.”


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