
Na edição de setembro do suplemento mensal do jornal vaticano L’Osservatore Romano intitulado “Donne Chiesa Mondo” (Mulheres Igreja Mundo), a teóloga Serena Noceti releia a mensagem que, em 8 de dezembro de 1965, no encerramento do Concílio Vaticano II, o Papa Montini entregava “à metade da imensa família humana”.
Serena Noceti
Em 8 de dezembro de 1965, na Praça São Pedro, ao final da missa solene de encerramento do Concílio Vaticano II, foi realizado um gesto simples, mas extremamente significativo: a leitura e a entrega de 7 mensagens dirigidas a outros tantos grupos e categorias de pessoas, com as quais o Concílio desejava estabelecer ou aprofundar um diálogo na era pós-conciliar que se iniciava. Ao lado dos textos dirigidos aos governantes, cientistas e intelectuais, artistas, trabalhadores, doentes e jovens, encontramos uma mensagem dirigida às mulheres e entregue a três mulheres, como representantes da “metade da imensa família humana”. Passaram-se quase 60 anos desde aquela leitura pública, que em certos aspectos constituía uma releitura do que o Concílio havia afirmado, e hoje se impõe uma releitura do gesto e do conteúdo dessa Mensagem.
Uma entrega simbólica
Cada uma das 7 Mensagens foi lida em francês por um cardeal, ao lado do qual se encontravam outros dois padres conciliares, e foi então entregue a um representante da categoria de pessoas a quem se dirigia, acompanhado por outros dois representantes do grupo. No caso da Mensagem às mulheres, as pessoas envolvidas são particularmente significativas: o texto foi lido pelo cardeal Leon Etienne Duval, arcebispo de Argel, homem de diálogo, fortemente empenhado no processo de pacificação da Argélia após o conflito pela independência. Ele estava acompanhado por dois bispos grandes protagonistas do Vaticano II: o arcebispo de Munique J. Döpfner (um dos quatro moderadores do Concílio) e o de Santiago do Chile, Raul Silva Henriquez. A Mensagem foi entregue a Laura Carta Segni, esposa de Antonio Segni, ex-presidente da República Italiana; esposa e mãe atenciosa, capaz de ficar ao lado do marido durante a doença que o levou a renunciar antecipadamente, e mulher comprometida com o serviço aos mais pobres, como Dama da Caridade em Sassari e em associações católicas femininas.
Muitas das características ideais da mulher cristã indicadas na Mensagem são encarnadas por Laura Segni. Ela estava acompanhada por duas das 23 ouvintes conciliares: a francesa Marie-Louise Monnet e a mexicana Luzia Alvarez Icaza. Monnet, envolvida na pastoral ambiental, promotora de associações e organizações para a participação e formação de leigos e leigas no testemunho, foi a primeira mulher a entrar na sala conciliar. Álvarez Icaza participava do Concílio junto com o marido, como coordenadores de percursos e associações de pastoral familiar (ela era então mãe de 11 filhos) e ofereceram uma contribuição inovadora essencial na redação do capítulo sobre matrimônio e família da Gaudium et spes.
A relevância das figuras envolvidas faz perceber a vontade de abrir (ou continuar) um diálogo que se sente como necessário: é o que deseja “a Igreja”, e já aqui se percebe um primeiro limite; diz-se Igreja, mas pensa-se na hierarquia, uma vez que as mulheres não são estranhas e externas ao corpo eclesial; pelo contrário, constituem “metade desta imensa multidão”, mas aqui são destinatárias, mais do que interlocutoras dos bispos e presbíteros, que se identificam com a voz da Igreja. Deve-se notar que se trata de três leigas: entre as mulheres ouvintes, 10 eram religiosas, mas nenhuma está envolvida na entrega, embora a Mensagem faça referência explícita às “virgens consagradas”.
Uma leitura tradicional
A Mensagem enuncia a condição de vida de diferentes categorias de mulheres – filhas, esposas, mães, viúvas, virgens consagradas, mulheres solteiras – e é evidente, mesmo numa primeira leitura, que a referência principal, se não exclusiva, é à dinâmica familiar como espaço próprio da mulher. Uma supervalorização da capacidade feminina de cuidar da vida e tecer relações pacíficas, que obscurece qualquer outro potencial criativo de discurso público para as mulheres, que mesmo os documentos do Concílio Vaticano II, por exemplo Gaudium et spes, tinham começado a traçar e, antes ainda, João XXIII tinha solenemente reconhecido como «sinal dos tempos» em Pacem in terris. A perspectiva é estereotipada e tradicional. Às mulheres é reservado o espaço delimitado da casa, dos papéis de cuidado, do apoio ao homem; aos homens, a primeira linha da ação pública no mundo.
Muito severo é o julgamento sobre o mundo contemporâneo (muito distante da perspectiva da Gaudium et spes), lugar de conflitos e crises, em risco de decadência e relativismo declarado, marcado pelo egoísmo e pela vontade de autodestruição masculina, ao qual se opõe uma exaltação excessiva do potencial feminino esponsal e materno, enquanto falta qualquer autocrítica por parte de uma Igreja que excluiu, marginalizou e silenciou as mulheres, e que sustentou durante séculos a fraqueza, a incapacidade e a fragilidade do sexo feminino: pelo contrário, afirma-se que a Igreja, ao longo de toda a sua história, sempre reconheceu a igual dignidade da mulher e promoveu a sua libertação. A Mensagem às mulheres ainda não consegue acolher plenamente as grandes intuições de renovação e reforma amadurecidas pelo Concílio Vaticano II: é uma releitura sob o signo da parcialidade, que nos leva de volta aos terrenos seguros de uma antropologia da complementaridade masculino-feminino e ao contexto consolidado dos papéis sociais estereotipados, justificados há séculos com base na religião.
Há 60 anos de distância, as palavras da Mensagem ressoam hoje distantes da experiência da maioria das mulheres (pensemos na forma como as solteiras são apresentadas neste texto) e também estranhas à grande lição eclesiológica conciliar.
Relê-las hoje permite-nos perceber imediatamente a profunda mudança que já ocorreu na Igreja Católica. A palavra das mulheres adquiriu um perfil público, é uma palavra rica em competência profissional e, não menos importante, em conhecimentos bíblicos e teológicos; é uma palavra marcada pela autoridade alcançada e hoje mais reconhecida, enquanto se coloca de forma lúcida – e, por vezes, com coragem – a questão dos papéis de autoridade e liderança das mulheres na Igreja. Hoje podemos efetivamente proclamar com certeza as palavras da Mensagem final: “chega a hora, a hora chegou, em que a vocação da mulher se completa em plenitude, a hora em que a mulher adquire na sociedade uma influência, um irradiar, um poder até agora nunca alcançado”.
Hoje reconhecemos a incompletude da visão antropológica e teológica androcentrica; reconhecemos as feridas que a cultura e a estrutura patriarcais produzem no corpo eclesial como um todo e não apenas nas mulheres. E, acima de tudo, reconhecemos a força da mudança ocorrida na recepção da visão da Igreja como povo de Deus, inclusiva e universal, como mostra o quadro sintético apresentado no Documento Final do Sínodo 2021-24, mas reconhecemos que muitas das resistências a este caminho da Igreja sinodal de mulheres e homens são expressas com palavras que são análogas às expressões estereotipadas da Mensagem às mulheres do Concílio.
A Mensagem pedia às mulheres que se empenhassem em «fazer penetrar o espírito deste Concílio nas instituições, nas escolas, nos lares, na vida quotidiana»: isso aconteceu sem dúvida; as mulheres, como “parceiras impensadas” do próprio Concílio, acolheram sua visão eclesiológica e contribuíram para torná-la viva e vital em diversos ambientes, incluindo aqueles reservados há séculos ao clero, desde as faculdades de teologia até a Cúria Romana. Chegou a hora de não mais pensar nas mulheres como um grupo desfavorecido pelo qual se deve trabalhar em vista de uma maior inclusão:
A re/leitura deste texto “atemporal” nos mostra os passos dados nestes 60 anos, mas nos lembra – pela motivação pastoral que o habita e pela forma como foi entregue – a força das intuições e da vontade de renovação.
*Teóloga, docente de Eclesiologia, Instituto Superior de Ciências Religiosas da Toscana
Fonte: Vatican News