
Oficiais da ativa e da reserva das Forças Armadas ouvidos pela Folha nos últimos dias expressaram uma cautela maior que a média para fazerem declarações públicas, por receio de que qualquer comentário possa interferir de algum modo no julgamento iniciado nesta terça-feira (2) ou causar mais ruídos num ambiente já tenso.
Em privado, os militares da ativa se mostram mais resignados que os inativos (da reserva e reformados), ecoando o discurso oficial dos atuais comandantes de que só resta respeitar o resultado do julgamento —e que este deve ser a condenação de todos os réus do chamado núcleo crucial da trama golpista.
Mas mesmo nesse grupo impera um sentimento de revolta que espelha muitas das críticas do bolsonarismo ao processo em curso no STF (Supremo Tribunal Federal). As principais: que é um julgamento de cartas marcadas; que deveria ser levado ao plenário, e não à Primeira Turma, integrada por “inimigos de Bolsonaro ou aliados de Lula” (a primeira referência é a Alexandre de Moraes, a segunda, a Flávio Dino (ex-ministro do petista) e Cristiano Zanin (seu ex-advogado), ambos indicados pelo atual presidente; e que em muitos dos casos analisados faltam provas e sobram convicções.
Dos oito integrantes do núcleo crucial, seis são militares, sendo quatro oficiais-generais de quatro estrelas, topo da carreira: Almir Garnier (Marinha), Braga Netto, Augusto Heleno e Paulo Sérgio (os três do Exército). Os outros são o próprio Jair Bolsonaro (capitão reformado do Exército) e o delator Mauro Cid (tenente-coronel da mesma corporação).
Além dessa visão crítica geral compartilhada por muitos, surgem opiniões mais específicas, como a de um influente general da reserva para quem é absurdo colocar Braga Netto como líder de qualquer planejamento, ainda mais em um núcleo do qual Heleno faz parte. Segundo o raciocínio, pelas características profissionais dos dois, Braga Netto jamais teria ascendência sobre Heleno.
Por outro lado, Braga Netto é, entre os generais no banco dos réus, o que goza de menos respaldo entre seus pares, sobretudo os da ativa. Antes mesmo de ser denunciado, o ex-ministro e ex-candidato a vice de Bolsonaro caiu em desgraça na cúpula do Exército pelo teor das mensagens divulgadas na investigação, em que, com palavrões, incita colegas a enxovalhar publicamente os comandantes Freire Gomes e Baptista Jr (Aeronáutica).
O fato de o interlocutor das mensagens ser Aílton Barros, um oficial expulso do Exército e com péssima reputação na corporação, só piorou a imagem de Braga Netto. Em casos como o dele, considerado uma nítida contaminação política do papel militar, oficiais da ativa defendem punição.
Embora a cautela seja a tônica, aqui e acolá há militares da reserva que divulgam posições críticas ao processo, sobretudo à condenação e às penas impostas aos manifestantes do 8 de Janeiro.
Numa live no Youtube no último domingo (31), o tenente-coronel da reserva da Aeronáutica Flávio Kauffmann convidou os generais da reserva do Exército Marco Aurélio Vieira e Luiz Eduardo Rocha Paiva para debater o tema “os militares e a política”.
Um dos assuntos tratados no encontro foi “a perfídia de 9 de janeiro em Brasília”, sobre o episódio em que “o Exército entregou manifestantes —muitos deles idosos, mulheres e crianças— à Polícia Federal sob promessa de liberação foi uma ação consciente e aceita pela instituição ou um desvio isolado?”. As frases foram escritas por Kaufmann para suscitar o debate.
Ele próprio opinou que a decisão de entregar manifestantes à Polícia Federal foi “cálculo político num determinado momento, para poder se alinhar com o poder civil constituído, e isso acabou custando a honra da Força [Exército]”.
Outros temas levados a debate na live foram: “O dever de obediência militar é absoluto ou encontra limites na razoabilidade e na moralidade das ordens?”; “Se os exércitos precedem o Estado, sua lealdade é à sociedade antes do governo?”; “A aproximação [dos militares] com Bolsonaro foi motivada pela origem militar ou pela plataforma conservadora?”; “As Forças Armadas funcionam como poder moderador no sistema constitucional?”.
No início deste ano, Kauffmann chacoalhou fóruns bolsonaristas na internet ao criticar uma declaração do presidente Lula sobre ter tido de esperar quatro horas por um avião da FAB para viajar de Brasília a São Paulo para um procedimento de emergência no crânio.
O tenente-coronel conjecturou que o comandante da FAB não tenha dado a Lula “a resposta merecida de imediato apenas por educação”. “Ou talvez ele tenha lembrado que a melhor atitude a ser tomada por um convidado em uma festa em que o anfitrião está bêbado e desanda a dizer besteiras é pedir o boné e se retirar.”
Kauffmann então manda um recado a Lula: “Senhor presidente, deixe-lhe informar óbvio, que os atuais comandantes militares e os áulicos palacianos não lhe dirão: os homens e mulheres integrantes da Força Aérea Brasileira seguem um rígido código de conduta moral. Não gostam do senhor e não se alinham com mentirosos e com aqueles que adulam ditadores ou terroristas”.
E arremata: “As Forças Armadas só lhe obedecem por estarem cumprindo o regulamento que as subordina ao governo escolhido pelo povo —considerando que o senhor o tenha sido. Torça para que todos demorem a perceber que seu governo talvez não represente a maioria da sociedade. Até lá, conte com o transporte VIP da Força Aérea, ainda que atrasado”.
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